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segunda-feira, 13 de junho de 2022

EPIFANIAS DE CAIO

 


Epifanias de Caio - Raul J. Franco


EU SANGRO E NÃO É DE HOJE…

ACORDO. FAÇO UM ACORDO COM A MORTE. 

Agora vejo fragmentos de poemas antigos pipocarem na minha cabeça…

Madrugada de frio corroendo a alma. Eu estou todo embrulhado como um bebê de alguma família latina que a mãe carrega nas costas. Seria uma criança boliviana? ou chilena…? Na verdade, acho que me sinto como outra criança. Uma criança esquimó. (não me cobrem coerência a essa altura do fato - rsrs) Sim, porque dizem que a criança esquimó é um ser evoluído, uma reencarnação de um antepassado… Acho que isso tem a ver com tudo que penso agora… 

Eu acordo meio que parecendo estar com febre… uma febre louca, uma febre terçã? (minha cabeça está em uma euforia de ideias e vejo informações se movimentarem de um lado para outro, como agora, lembrando a canção Águas de Março). 

Reluto em sair da cama. Tento entender o que houve. E me vem o choro… um choro que me rasga… um grito doído mas necessário… começo a ver frases inteiras brilhando na minha testa como os anúncios florescentes das placas de Saída de Emergência. 

Choro mais. Penso na minha mãe. Queria abraçá-la e chorar muito (ela não entenderia nada). Queria chorar e pedir desculpas por tudo, até pelas coisas que nem sei se cometi. 

Você pode não estar entendendo nada. Poucos entendem esse furor que bate… eu entendo bem. Fazia tempo que ele não vinha. E muitos dias tenho ficado em silêncio, procurando alguma epifania que me salve no meio da cozinha.

Sei… esse texto vai ficar grande. Poucos embarcarão, afinal, a vida tornou-se tão dinâmica e vazia, como uma dancinha de TikTok. 

Bom, eu pulei da cama e chorei mais, muito… as frases começam a brotar mais forte, pedindo-me para registrá-las. Corro… tenho medo de perder isso que traduz tanta coisa em mim. 

Explico: tenho mania de ler mais de 4 livros ao mesmo tempo. Gosto de sair de um pro outro. E agora com o meu kindle, a coisa de pular de um livro pra outro ficou mais fácil. E lá eu já tenho muitos livros e tenho mesmo que correr para lê-los. Tenho - obviamente - muita Clarice Lispector e muito Caio Fernando Abreu. Nem estava nos meus planos ler um Caio agora, por exemplo, até porque pensei que já tinha lido quase tudo. Foi aí que cheguei em Pequenas Epifanias. Quando fui ler, vi que eram crônicas que ele escreveu pro jornal Estado de São Paulo. Juro que passei uma vida pensando que o livro era uma reunião de contos de todos os seus livros. Não sei de onde tirei essa ideia. A edição que tenho é de 2014.

Antes, preciso explicar algo… Tentarei ser breve. Eu passei a saber quem era Caio, assistindo a uma entrevista na TV. Não sei se o ano era 1994 ou 1995. O que sei é que fiquei hipnotizado por aquele cara de fala forte, precisa, o sotaque gaúcho. Como gostei, segui vendo a entrevista. Em um dado momento, percebi que ele falava que era soropositivo e dizia como enfrentava isso e que a sua vida, então, passou a ser uma despedida. Aquilo me deixou extremamente assustado, porque a AIDS ainda era uma coisa aterrorizante. Muita gente já tinha morrido em decorrência do vírus. Morriam sem nem mesmo assumir a soropositividade, já que este assunto era rodeado de preconceito. E eu estava diante de um cara que falava com uma calma e um certo ar de resiliência. Essa entrevista me marcou muito. Guardei o seu nome: CAIO FERNANDO ABREU.

Uma vez eu estava em uma reunião de teatro em Belém em fevereiro de 1996 e recebi um texto xerocado com algo do Caio. Se não me engano o título era Nem uma gota a mais. E era um texto que havia circulado por uma entidade de apoio a pessoas portadoras de HIV (que acho que o nome era ParaVida - e nesse mesmo ano eu iria me apresentar lá). Logo depois soube da partida do Caio, no dia 25 de fevereiro de 96. Também me chegou um novo texto dele chamado Carta para além dos muros. Eu pensei: preciso urgente conhecer melhor a obra deste cara. 

Aí vem a coincidência da vida. Certo dia eu estava no quarto de minha mãe em Belém do Pará e vi em sua cama o livro “Morangos Mofados”, de Caio. Uma aluna havia dado de presente de aniversário para minha mãe (22/05/1996 - minha mãe estava fazendo 45 anos). Eu pirei. Disse: "Mãe, eu vi esse cara, ele é genial! Deixa eu ler esse livro, por favor, por favor”. Pedi de uma maneira eufórica e insistente. Qual mãe resiste a isso?

Com o livro em mãos, passei madrugadas intensas com o Caio no meu quarto. Cara, eu me vi atravessado por cada imagem, cada frase, cada metáfora, cada mergulho do Caio. Eu lia e me acabava de chorar. E aquilo começava a existir dentro de mim como pessoas reais. Cada conto era um amigo, conversando comigo. Agora vejo as imagens dos contos em mim, ainda hoje, aos 48 anos. Eu senti com o caio o que senti com Clarice aos 15 anos. E mal eu sabia o quanto essas duas pessoas iriam me influenciar e me fazer compreender a vida de uma forma grandiosa.

Ainda estou no ano de 1996. Eu, um garoto de 22 anos, prestes a terminar o curso de ciências sociais. Eu era monitor de Antropologia e criei um projeto, junto com a minha professora Ivone Correa, que se chamava O TEATRO E A ANTROPOLOGIA, onde eu criaria espetáculos teatrais com temáticas antropológicas. Em outubro, escrevi algo que nascia de uma mistura louca de Caio Fernando Abreu e alguns poetas que eu estava lendo no Caderno Mais!, da Folha de São Paulo, que minha mãe brilhantemente assinou para termos um jornal interessante em casa. Esses cadernos também me revolucionaram. Eu estava com a mente borbulhando. E a temática que eu abordaria no trabalho seria a homossexualidade. Foi quando recorri a poetas gays e ídolos meus, também gays, como Cazuza, Renato Russo e Freddie Mercury. Fiz uma imensa salada e dei o nome de OS VAMPIROS USAM SMOKING. Nossa, como eu me empolguei com esse trabalho! Um detalhe muito importante: Renato Russo - que era citado na peça que também tinha as suas canções - faleceu enquanto estávamos em processo de ensaio do projeto. Renato se foi no dia 11/10/1996. Uma sexta. Cancelei o ensaio e me acabei de chorar no quarto. Mas, enfim, o trabalho estreou e foi uma das coisas mais impactantes que fiz no hall de entrada da minha faculdade, com muitas pessoas em volta assistindo. 

Ali era a primeira influência direta de Caio em minha vida. O modo que eu criava os meus diálogos mudou. Passei a trabalhar mais cada conto, criando atmosferas incríveis. Obrigado, Caio!

Mas vamos agora falar de Pequenas Epifanias. Quando vi que eram crônicas, pensei que seria algo mais leve, não tão impactante. E segui lendo. De cara, achei bem interessante ver citações de Caio de coisas relacionadas aos anos 90. Um outro momento, uma outra forma de viver e de perceber a realidade. Legal também porque vejo Caio citando Renato Russo, Adriana Calcanhotto, Hilda Hilst e outras figuras tão importantes que eu também acompanhava nos anos 90. Então, tenho certeza mesmo que esse cara existiu (risos). Porque, às vezes, parece que ele só existe em mim, é um espectro que me visita vezemquando.  

Segui lendo e fui viajando novamente no Universo do Caio. Parecia que ele estava ali na minha frente, em um diálogo muito intenso. E as crônicas dessa edição vem datadas e vão até dezembro de 1995. Caio fala de AIDS, de solidão, de suicídio, de medo, de um trem que pode pegá-lo a qualquer momento (logo lembrei de uma canção de Raul Seixas, O trem das 7. Coincidentemente uma canção do ano que eu nasci, 1974). 

Resolvi terminar o livro nesta madrugada. E ainda tinha vindo de uma peça teatral que fui ver: “Que mundo deixaremos para Keith?”. Um peça que fala sobre escola, educação e os atores passeiam pelas suas memórias que batem muito com as minhas. Uma profunda viagem pelos anos 80. E tem uma fala que se repete de não deixarmos a nossa criança morrer na vida adulta. Isso é algo tão impactante para mim e que revi profundamente em meus processos de cura. Então, eu me pus a pensar no Raul menino. Onde ele se foi? Em que rua se perdeu? Pensei no Caio criança também. Aquele momento que nada sabemos da vida e temos tantos sonhos, tantas euforias. É bom saber que tivemos infância, como Arnaldo Antunes fala em uma canção. 

Nas últimas crônicas que li o Caio fala muito do frio de agosto em Porto Alegre. Muitas crônicas dissertam sobre isso. E eu completamente empacotado, embaixo de dois edredons, com luva. Eu mudava a página do kindle com o nariz. Como disse, parecia que eu estava com uma febre. Uma corrente de profunda energia percorria o meu corpo que tremia. Segui lendo de forma veemente cada crônica. Ameaçava terminar uma e dormir para terminar o livro assim que acordasse. Mas decidi mesmo ler até o final. E olha que coisa louca: Caio fala muito sobre o vírus da AIDS e eu penso em nosso tempo, no Covid. Nesse medo que ainda apavora. Eu aqui em pleno 2022, vivendo essa atmosfera de incertezas. Como eu sabia que o Caio iria morrer em fevereiro de 1996 (sim, eu li o livro acompanhando a vida do Caio pelas crônicas, como se tudo estivesse acontecendo naquele instante)...., então eu queria mudar, inocentemente, o fim dessa história… queria parar o tempo e salvar o Caio. Na peça que vi antes de chegar em casa para ler, “Que mundo deixaremos para Keith?”, tem um momento que fala disso, sobre um episódio, se não me engano, da série Além da Imaginação, onde um garoto tem essa possibilidade de parar o tempo. Já pensou? 

Mas meu herói Caio Fernando Abreu realmente morreu. E absurdamente vejo o quanto ele ainda exerce um fascínio sobre mim. O quanto ele me percorre, uma corrente de energia mesmo que me fez saltar da cama às 7h30 (eu que tinha ido dormir às 6h30). Agora me vejo calmo. Ainda pensando no tempo que passa, na vida que passou. Quis gritar… este texto me ajudou. As lágrimas me pediam: “escreva, escreva…”. E na semana que passou ainda teve aniversário da minha irmã. 50 anos! Em seu rosto vejo o tempo que passou. Em mim procuro as rugas dos 48 anos. O tempo passou… Agora sinto que acordei, como se  estivesse suspenso… olhando uma vida que ainda quero regar. Obrigado, Caio! Obrigado, vida!